Tantos cantos

O homem que sai para o mar
Navega seu mundo sem leme
Lança-se às águas, sem portos
Nem tempo para regressar
O que abraça a sua tarrafa
Mata a fome de peixe
Do boto que canta
No Éden, serpente
Encanta-se com outros contos,
Outras praias, outras contas
Medusas, sereias e seus cantos
Põe-se a desbravar as tormentas
E teme à Rainha do Mar
Respeita as velas, os sopros
Os barcos, as rosas e seus ventos
Mitos que homem algum
Atreveu-se a desvendar

O homem que segue as águas
Sempre deixa alguém a chorar
O homem do mundo caminha
Trilha destinos, mandingas
Joga-se aos becos, deita nos trilhos
Percorre vielas, ruas, esquinas
Sua cama é o relento, marquises
Túneis sem luz e sem fim
Vive embaixo de pontes
Atravessa transeuntes, vira latas
Aos montes, nos bares, nos copos
Recosta seus sonhos, seu corpo
Suado, calejado, imundo
Canta cantos de deuses
Em contas e patuás
Deseja os mares que divide
Seus mundos, tal homem
Não se contenta com o chão a pisar
Sonha com o distante, com a lua
Conquistas e terras, outras curvas
Outras ruas, todas nuas, cintilantesO homem que casa com o mundo
Sempre deixa alguma a chorar

O homem que habita minha mente
Encobre-se em panos e cortinas
Enfeita seu mundo de ideias
Com confetes e serpentinas
Vive a almejar alcançar
O que mora atrás de outros muros
O que imagina sem nunca ver
É um grito que ecoa mudo
Pensa que sabe, sabe que não
O homem que me cruza o destino
Segue-me pelos mesmos mares
Versos, rimas, mesmos mundos
E qual seja o percurso ou caminho

O homem que me encanta
Canta o que crê ser seu mundo
Cita ideias, poetas, filosofias
Mas, não arrisca uma só vida
Equilibra-se soturno em suas camas de gato
Afia as garras, espreita presas
Taciturno na noite lamenta
Não ter a destreza do homem do mar
Deleita outras línguas, outras terras
Todas elas, sem ao menos saber navegar
Também não tem a dureza, a impureza
Do homem mundano, poeta profano
Mesmo assim, assim como todos
Este, embora tão perto, também
Deixa alguém a chorar…

(Alessandra Capriles)

Anjo dos versos

A distância consome o tempo
Não tenho mais flores em minhas mãos
Minha caixa de doces amarga fel
Toda poesia escrita adormece
O punho recostado ao papel
Todo diálogo, ensaios vãos
O anjo dos versos somente aparece
Em distantes metáforas além céu
Rimo o perdão com a ilusão
Amor com dor, sem ardor
Busco sentidos em silêncios
Ausências em palavras
E em nenhuma delas faço falta
Quem será deste amor merecedor?
Busco por qualquer vaidade
Pretensas vontades por tua afeição
Mas não me encontro, porque não sou
Queria eu dar-te alguma alegria
Sem ser mais uma a adular a ti
Enfeitando teus dias em alegorias
Distraindo o teu falso carnaval
Destes dias de qualquer redenção
De um sabor rubro de desejos
Que anseiam nenhuma verdade
Somente o sabor da fruta carnal
Salivando a libido que acende
E escorre sem confrontar os espinhos
Sem flores, sem ramos
Sementes ou brotos
O som de teus acordes
Buscam qualquer liberdade
E o que serão?
Seres livres alados
Ancorados aos próprios passos
Não desafiam os pés aos caminhos
Enganam-se em linhas
Cruzam rumos em desalinho
E o Som, que já não é o mesmo
Haverá tua identidade?
O que há de ti, e de quantos
Que te cruzam e atravessam?
As notas buscam sua própria voz
O quanto de ti e de mim
Há de fato em quem?
Em tudo o que ajo e penso
Não há nada de ti que não permaneça
Não há alma minha que não te sinta
E não aqueça o pensamento
Acendo a lareira da lembrança
Do teu e meu corpo que nunca se fez
Resgato da dor o que te dei de amor
E me basto, em meu sentimento
Por ti me basto
Dei-te flores a mim
Retratei o teu rosto em meu nome
Adocei os teus lábios
Recheados com meu desejo
Amar valeu a pena?
Passe o tempo que passar
Tua ausência será verso
Anjo das letras e das canções
Das teorias e das conspirações
Em cada pétala teu tato estará
A cada dia que se arrastar
Em todo sentimento verás
Mesmo que de corpo ausente
A poesia transbordará veraz

(Alessandra Capriles)

Herança

Só quero uma casa de janela amarela
No meio da praia, ilha deserta
Quero também uma rede no meio do verde
Sombra das árvores e vista pros mares
Quero um fogão à lenha
Panela de barro
Vento, lua, lareira
Flores e cheiro de mato
Quero pescar de canoa
Ficar bem à toa
Ler muitos livros
Brincar com meus filhos
Quero remar os teus rios
Deslizar cachoeiras
Acenar aos navios, castelos, areias
Quero ouvir as canções
Reviver emoções
Esquecer-me da hora ao som de viola
Quero acordar bem mais cedo
Ver o sol posto nascendo
Rolar pela praia dizendo
Que amo sem medo
Dos outros quero pouco
Paz e água de coco
Vida plena, a herança
Amor e boas lembranças

(Alessandra Capriles)

Desejo Onírico

Quando o passado bate à porta
O peso quase todo esvaece
Nenhuma cicatriz mais se percebe
A pele já não sente, o toque já não arde
O pensamento busca o que só
Onírico se faz presente
Reviro a gaveta em busca
De minha metáfora lá adormecida
A única que me conforta a distância
Das descobertas não vividas
Nenhuma palavra convence
Mais do que as não ditas
No teu silêncio me encontro
Como em nenhum outro discurso
E lá me firmo na relutante fé
Em um sussurro decifrado mentalmente
Que me sustenta a crença
De tudo o que almejo
Teu silêncio me ama tanto
Em minhas ideias concebidas
Tão mais do que o amor
De algumas palavras proferidas
Que não me alcançam, ou enlaçam
Nem transcendem
Transpõem-se somente ao respeito mútuo
Pelo amor maior que inevitável nos pertence
Fruto do imensurável gerado pelo ventre
O teu amor que tanto amo
Este procria versos em minha mente
Fecunda a cada ato quisto ou pensado
Soa canções que me embalam os dias
E levo constante a cada canto
Em um anímico acalanto
Da minh’alma quando encosta na tua
A todo tempo, a cada instante
Mas resistes assim sempre tão distante
O pensamento me protege, e desafia
A te deixar no percurso e seguir a trilha
Mas meus devaneios sufocam, te anseiam
Tanto quanto te amo, tenho em mim o desejo
E sigo ouvindo silêncios, criando metáforas
Almejando palavras tuas, que não são minhas
Converso um diálogo vago literário
Repleto de afortunadas pobres rimas…
Porque o sentimento resiste
Mesmo que fadado ao aparente fracasso
Ou se faça obstante o presente momento
Ele te busca, te afaga, te toma pelas mãos
Empresta meus braços aos teus
Te recosta em meu peito
O sentimento te quer, tanto quanto meu corpo
Te desejo, mas arredio mantém-se
E te deixo, porque somente eu te pertenço
Mas, nada a mim… e é tudo o que tenho…
Persevero na espera, adormeço no tempo
Só em meus prantos, e neste vago imenso

(Alessandra Capriles)

A velha crítica, o mesmo cais

A lâmpada que acende o cômodo, já não há
As paredes são mais cinzas do que o céu
Uma revoada de abutres, aves de rapina
Em busca de um repouso, um consolo, uma verdade
De suas próprias carnificinas e detritos humanos
Sobrevoam ideias obscuras, ou talvez a cura
Para tanta tempestade neste âmago já derramado
Exaurido, exasperado, corroído, remendado
Buscam purificar-se neste horizonte inebriado
Os versos lutam por um feixe irradiante
Mas, deste cais flutuante inerte ao tempo
Nem uma onda os alcança mais
As ideias em seu único mundo mimético
E esta voz mareada de tudo o que já se viu
Desta imposta verossimilhança sem sentido
Crio pontes neste céu, viro mar
Aquedutos derrubam ferozes minhas paredes
Transponho mananciais, percorro tempestades
Relampejo nos abutres deste firmamento
Sobrevoo minha própria imensidão
Transcorro suave o fluxo dos dias
Em busca do maná que nutre a poesia
Busco-te além das projeções das sombras
Busco o que acende a sombra
O fogo que clareia este eco figurativo
De inúmeras possibilidades em uma só
Encontro em cada releitura novos sentidos

Encontro em cada releitura novos sentidos…

E todos pertencem somente ao que me condiz
Não há releitura que se mantenha fiel, além de mim
Não há essência que permaneça pura
O impulso crítico transcorre além de paródias
Ou comédias de tragédias mal resolvidas
E pode alcançar o seu eu além do que é retomado
E, não sendo assim tão crítica, e não estilizada, parafraseio
Não para que permaneça intacta a ideia
Até porque, não sendo mais de sua origem, algo já se perdeu
A fidelidade do que torna essencial a palavra
Compete somente a quem pertence, a ninguém mais
Palavras mal postas, interpretações múltiplas
Uma e outra, teorias se fundem, ou confundem?
Impossível penetrar às ideias de um poeta
Pobres tolos, todos somos, poetas ou desprovidos de espírito
Remete a um emaranhado teórico carnavalizado
A um baile de máscaras que duelam suas antíteses
Vou do céu ao inferno, do divino ao profano
Liberto-me das ideologias, caminho pelas camadas ocultas
Aquelas que os olhos tão cheios de giz não veem
Liberto-me dos paradigmas, das novas críticas
Não sou imanente, restrita, por detrás do que se lê
Há sempre uma biografia, não há estrelas sem um céu
Meu céu é para ser visto a olhos nus, com toda a sua intenção
Não crio versos científicos, orgânicos, estruturais
Meu contexto transcende à imaginação
Meu organismo pulsa, meus versos latejam
Minhas palavras me sustentam, e não eu a elas
Dominar as palavras é deixar-se dominar
É um enlace, uma relação, um ato, uma procriação
O vínculo placentário é mais do que um resgate dominante
Além do berço, toda releitura é uma nova escritura
Cada verso de uma poesia é uma nova criatura
Poesia se sente, degusta-se, decifra-se pouco a pouco
Poesia se navega, liberta-se em todas as catarses
Nos versos, purificam-se todos os eus, os meus e os teus
Os céus clareiam, dissipam as tempestades
Nestas linhas, deleitam-se além das dores
As paredes sustentam o que já não são muros
E somos um, libertos de tantas críticas, e meras teorias
Todas as respostas valem a quem transpõe as ideias

(Alessandra Capriles)