Ao que não há remédio, remediado está?

Três dias sem comer, em um quarto escuro. Uma imersão profunda de autoconhecimento.

Poderia ser a cena de algum filme de drama, suspense, ou policial, mas a vida real também monta seus cárceres próprios.

É um “eu” sozinho eterno. Mas, os pensamentos são muitos.

Acho que é por isso que “solitária” tem esse nome.

A reclusão nos leva a um lugar onde jamais quem nunca se privou da liberdade saberá. Acho que por isso o cárcere é uma forma de penitência que “purifica”.

As grades são muitas. É como um labirinto sem saída. Andar em círculos, envolto aos mesmos pensamentos.

Do que estou falando?

Ninguém sabe. E, não adianta explicar. Para mim também é tudo muito novo, embora já convivamos uma vida inteira.

Semana passada, após quase dois anos de pesquisa, com exames e consultas quase diárias, em uma jornada super desgastante, indo a lugares onde até os deuses duvidam, passando por procedimentos e internações exaustivas e dolorosas, descobrindo mais de 10 doenças crônicas, porém não a chave do problema, sendo quase laparotomizada, finalmente, fui diagnosticada.

Fibromialgia.

Pois, tanto desgaste, debilitando-me ainda mais, para descobrir que tenho mais uma doença crônica, que não tem cura, que pode ser degenerativa e paralisante, e assim foi ao longo de todos esses anos sem investigação de sintomas, que para mim eram normais.

Passei a minha infância sendo levada pela Titi ao neurologista, por conta de enxaqueca, insônia e alguns traumas, e ainda nem se falava de autismo e TDAH. Uma pequena gênia autodidata, com diversos transtornos, jamais compreendidos ao passado leigo, preconceituoso e desinformado.

As dores nas pernas “eram dores do crescimento”, mas não passaram na fase adulta.

Atividades físicas, como dança, andar de patins, skate e bicicleta, correr, natação, e outras mais, salvaram a minha vida, durante muito tempo.

As dores das pernas diminuíam, mas o resto do corpo reclamava, e eu achava que eu precisava de mais atividade, e assim não parava.

De atividades físicas de alta performance, até atividades laborais maçantes, desde a infância e adolescência.

Estava, desta maneira, firmando um contrato com a doença.

Porém, como nada era constatado, era ignorado, e reclamar era “chamar atenção”.

Logo, aprendi a me calar. Logo, aprendi a tolerar a dor. Logo, sentir dor era algo normal, e eu era somente louca, transtornada, irritada e nervosinha, e que se enchia de analgésicos, que de nada adiantavam, aos olhos de quem não via o que acontecia por dentro.

O sorriso e o bom humor, tão cedo precisei aprender a manter para agradar ao público. Poliana me ensinou a jogar o jogo do contente. Um dos primeiros livros que li na infância.

Na vida adulta não foi diferente. Nada era diferente. Seguia jogando o jogo, pois agora a brincadeira era sobrevivência. E, nesse jogo, as rasteiras e quedas são sempre certas.

Adoecer no meio corporativo é ser peso morto. Carta fora do baralho. Quem quer encostar empregado? INSS? O governo odeia pobre. Pobre e doente, então. Deixa passar fome, que morre mais rápido. Então, a demissão é sempre o melhor business.

Todos somos substituíveis. Vocês podem gerar os maiores lucros, serem os funcionários do mês, exemplares, mas sempre serão substituíveis. Aprendam isso.

E, assim, muitas vezes fui demitida, ficando ainda mais doente, mais deprimida, até decidir ser freela, e depois microempreendedora da sobrevivência e do desespero. Péssima ideia. A solidão do microempreendedor individual é ainda maior.

Sempre começando de novo, e começar de novo é sempre mais exaustivo. É como um eterno “Efeito Borboleta”. Ninguém nunca entendia tantos recomeços, mas só eu sabia onde o calo apertava.

Pois, nada diferente poderia ser feito, o futuro já estava traçado, e conviver com aquela situação era inevitável.

De diferente, poderia ter feito menos. Viver no mediano. Só que é como se eu soubesse que meu corpo tinha um tempo para ser intenso. Dicotômico, mas precisava. E, assim vivi.

Vivi tão intensamente, que não sinto falta de nada. Tudo o que vivi foi para eu lembrar o quanto fiz, e o quanto vivi. E, essas lembranças me mantém viva.

Pena que volta e meia vêm as lembranças não tão boas, porque no jogo do contente a gente só ludibria a fatídica realidade. Mas, tudo coexiste.

Nessa coexistência, tudo se mistura, até o ponto de deixarmos de saber quem somos, de fato. E, assim, viramos dor, lembranças e solidão.

Ela. Sempre ela. A minha mais fiel companheira.

Adoecer é um ato solitário. Ninguém mais vai lá. É como habitar um quarto escuro sem alimento por três dias, e saber que os próximos serão iguais. Porque ninguém mais vai lá. Até que se morre, e depois só se sente o cheiro ao longe.

É saber que desaparecer é fácil. É simples. E, também é amor próprio, porque se ninguém mais vai lá, é porque nunca esteve. Assim nos abstemos do vazio desnecessário.

E, tudo se torna habitual. A rotina da solidão é movimentada na mente. Dá tempo para muitas vozes próprias, para os seus “eus”, suas questões, sua autoanálise e autoconhecimento.

Percebemos que podemos ser melhores e piores do que somos, mas sem muito saber o que fazer. E, assim vamos do melhor ao pior, mostramos o nosso céu e a nossa treva em instantes, porque tudo gira desconexo na mente, é um anjo tocando harpa, e um demônio espetando o tridente.

Não há paz, nem silêncio. Só dor.

A doença não é o problema. O problema é o que ela faz. E, ela faz tanta coisa, que eu não saberia nem explicar, porque nem toda a ciência ainda é capaz de explicar.

Mas, recebo com gratidão as boas escolhas que fiz no caminho.

Parar foi necessário, apesar de doloroso e triste. Ninguém quer se sentir inútil. E, descobri que não sou. Estar só foi o que me manteve viva. Nunca se sabe quando se deita com o inimigo, ou se senta ao lado dele.

Escolher pelo que lutar, foi manter viva a chama dos meus ideais e do amor próprio. E, buscar ajuda foi um dos meus maiores obstáculos, mas consegui algumas, em meio a essa estrada solitária.

Minha enorme e eterna gratidão aos bons profissionais que cruzei o caminho.

Amigos? Não, não falo de amigos, não. Isso eu deixo para outros carnavais.

Esses já se foram tem tempo. Pandemia foi só pretexto. Ninguém gosta de gente doente. E, isso é natural da vida. Com o tempo os amigos se vão mesmo. Acostumem-se. Nada de ser emocionado, meu povo.

“Nascemos sós, morremos sós”.

Amigo vem, amigo vai, mas no fim todos se vão. Lei natural da vida, da sabedoria e do discernimento.

Na doença não tem glamour. Ao mundo falta empatia.

Tem é um bando de gente que diz que “é espiritual”, outras que “é fingimento”, outras que “é pra chamar atenção”, tudo porque ninguém está vendo a dor.

Por isso, denomina-se doença invisível. Mas, tudo devoto de Tomé. Ou, de Judas mesmo.

Tem também os diretamente descontentes que chamam de “vagabunda”, mas não teriam aguentado nem metade da história de vida e dor na pele da “vagabunda”, os que se irritam, porque vão ter que dar um jeito de se livrar da doente, e “trocar por uma mais novinha que não dê defeito”, porque gente doente se torna inútil e desprezível, se não dá retorno, ou gera lucro e renda.

O escravo só serve ao Coronel, mas não paga o ouro dele. Escravo doente é escravo morto na senzala.

A doença não é uma só. Não é um remedinho que dá e passa. Até porque, olhem só que brinde: não posso tomar qualquer remedinho. E, o que posso, ainda é inacessível ao povo.

Lucros e tabus que alimentam muita renda concentrada. Pobre tem mesmo é que morrer, assim pensam, e legislam.

A doença mata aos poucos e dolorosamente. Ela mata sonhos, planos, desejos, humor, rotina, personalidade, sentimentos, dignidade etc. Quando você vê, não sabe quem é mais.

Estou no auge da depressão, há uns dias. Passei por situações de gatilhos, perdas de parentes que eram meu alicerce, noites e dias de pânico, anorexia nervosa, sem conseguir comer nada, devido ao pânico, ansiedade por não saber o que vai acontecer, pensamentos mil, busca de soluções de problemas práticos da vida, e dores.

Muitas dores.

Pois, os sintomas são múltiplos e diversos, dói o corpo todo, todos os órgãos, a cabeça, a mente, a doença é de origem neural, o que a torna mais complexa e difusa.

Mas, este não é um texto científico. É um desabafo, é um grito, um choro de dor e alívio. Alívio por finalmente descobrir o que tenho, e poder provar que não sou “louca”, e dor, porque ela é inevitável mesmo.

E, assim, vamos aprender a conviver: a dor, a solidão e eu. Espero que pelo menos a depressão vá embora, e dê um respiro, porque aí sobra mais espaço para gozar do que ainda resta de vida. E, há muita.

Eu ainda vou fotografar muita paisagem bonita por aí…

(Alessandra Capriles)

Deixe um comentário