A cerne exposta.

Já se passaram alguns dias dos infelizes casos das crianças e da atriz Klara Castanho, que foram estupradas. Eu não ia comentar, porque falar sobre o assunto é sempre gatilho, mas não consigo me calar.

Eu me pronunciei em minha página WordPress, no caso da menina que foi estuprada por mais de 30 elementos, em uma comunidade, em 2016. Também me pronunciei no caso Mari Ferrer, ano passado, sendo inclusive criada uma nova lei, que visa evitar a revitimização e exposição da vítima de violência sexual, baseado no caso dela. Vitória feminina? Seria, se a sociedade não fosse incuravelmente machista.

Como mulher, feminista, mãe e ser humano, não posso me calar, e, há algum tempo, decidi não mais me calar diante de fatos como esses. Diante de pessoas que violam o corpo, a moral, o psicológico, a alma feminina etc, porque a violência aos nossos corpos dilacera todo o ser.

Incluo-me nessa afirmação como também mulher, feminista, mãe, ser humano e, infelizmente, também vítima da violência.

Quando tinha 14 anos, entrei em uma grande depressão. Ninguém sabia, ninguém entendia, mas todos julgavam. Perdi pessoas, não digo amigos, porque nunca foram. Por fim, de todos, por mim, afastei-me.

O motivo da depressão?

Os abusadores sempre esquecem, mas as vítimas, não. O abusador/estuprador violenta a vítima uma vez, mas ela segue sendo violentada e revitimizada a vida inteira. As lembranças são atrozes. Quantas vezes não pensei em me vingar, denunciar, mas eu, tão criança, já sabia que em nada daria, seria ainda mais humilhada, ou até mesmo desacreditada.

Eram vários rapazes. Uns vinte. Todos conhecidos, de convívio quase diário, de muito tempo, que acharam por bem “brincar” com meu corpo. Comecei achando que, de fato, era uma “brincadeira” muito da sem graça, por sinal, e me levantei para ir embora. Nisso, um deles me segurou, e começaram a passar a mão pelo meu corpo.

Naquele momento, entrei em pânico. Só conseguia imaginar o pior, e, em instantes, mil coisas passaram pela minha cabeça: eu era virgem, e tinha uma amiga da mesma idade recém descoberta a gravidez. Também, havia presenciado um estupro, pouco tempo antes, corri até a cabine policial do mesmo lugar onde fui violentada (olhe a coincidência), chamei o policial para ajudarmos a menina que foi colocada em um carro, e o policial, simplesmente, ignorou o socorro. Tomara que não tenha sido filha dele… Enfim…

O mesmo cara que estava estuprando a menina, dias antes, estava se masturbando no mesmo carro, com a porta aberta, na esquina da rua em frente ao meu prédio. Minha amiga e eu vimos, e corremos. Eu o reconheci, além do modelo, cor e placa do carro utilizado por ele para praticar os crimes.

Pois, voltando ao fato… Todos rapazes de classe média e média alta, em um condomínio de classe média alta, em área nobre da zona sul. Quem era eu naquela situação, pensei eu. Além de um corpo e uma alma dilacerados, e um trauma eterno, eu me sentia ainda menor, diante daquilo tudo.

Por fim, um dos que começou a brincadeira, que era o rapaz por quem eu era apaixonada, arrependido, ou imaginando o problema que aquilo daria, abraçou-me, e me tirou dali. Logo depois, meu primo ficou sabendo, foi lá tirar satisfação, desculparam-se para ele, que era enorme, lutava e era “parça” deles, mas não a mim.

Eu os vi, inúmeras vezes, depois. Todos eles. Alguns, perdoei pelo tempo, por acreditar que eram imaturos, e foram na onda dos outros, mas a gente não esquece. A sociedade não nos deixa esquecer. O gatilho sempre vem.

Além do que, mesmo passados tantos anos, a maioria segue o mesmo padrão de pensamento e comportamento, inclusive votando e defendendo político misógino de estimação.

O ato sexual em si não houve, mas mesmo assim continua sendo estupro. Como falei, não é só o corpo feminino que é violado. E, se o tal rapaz não tivesse se “arrependido”, e me tirado dali, o que poderia ter acontecido?

O assunto morreu. Além dos envolvidos, poucos souberam, mas todos se calaram. Só me retirei, e pouco tempo depois, mudei de bairro. Nessa mudança, a depressão só aumentou, mas isso já é outro assunto. Também de violência, ou retomada de uma violência, que eu achava que também já estava esquecida.

Minha vida foi marcada por diversos tipos de violência, desde a infância. Conheci todas elas. Por isso, não posso mais me calar.

Relatei aqui esse fato engasgado na garganta, há 24 anos, como também tenho relatado outros, para encorajar outras pessoas a denunciarem, e porque meu corpo não aguenta mais se calar. Calar adoece. E, é coisa demais que eu tive que calar, nessa vida…

A sociedade precisa informar e de informação.

Tivemos os casos midiáticos mais recentes das crianças estupradas, que tiveram seu direito legal ao aborto seguro negado, e foram condenadas por exigirem seus direitos, e da atriz que optou pela adoção voluntária, direito também assegurado por lei, e igualmente foi condenada por um crime de abandono de incapaz, que nem se enquadra na questão, e outros argumentos teóricos, religiosos e filosóficos mais, que só enojam.

Em todos os casos, as mulheres foram revitimizadas. Os estupradores/abusadores/agressores? Nem se fala deles. A sociedade passa um pano danado…

Culpa da mulher! O que estava fazendo lá? Por que estava com aquela roupa? Mas, se é namorado, ou marido, não é consensual? 冷 Se não houve o ato, porque foi abuso/estupro/violência? Por que não denunciou antes? Por quê? E, muitos por quês, porque os julgamentos nunca cessam, e haja porquê para tanta ignorância.

Em qualquer tipo de violência contra a mulher a revitimização e a violência nunca acabam. Não basta ser violada uma única vez, para a sociedade é pouco. Muitos juízes para pouca Lei.

O que a sociedade machista não faz é divulgar, informar e buscar representantes decentes para a sua nação.

Falta informação, desde a infância. Crianças, menines, e adultos.

Falta investir em políticas públicas.

Faltam leis efetivas, o cumprimento delas e rigor nas penas das já existentes.

Falta consciência, pois o povo busca, e elege seu semelhante, que garante a impunidade, protege os bandidos, e julga as vítimas.

Ser mulher é muito mais do que uma luta diária, e contar com a sorte. Bem como qualquer classe inferior, aos olhos da sociedade, que julga gênero, sexualidade, raça, classe social, e tudo o mais que ela puder, com seus discursos de ódio.

A revolta com as injustiças e impunidades? Essa não há. Esses também são julgados. Loucos! Doentes! Rebeldes “sem causa”! “Esquerdopatas”! Comunistas! E, por aí vai…

São tempos difíceis e sombrios para todos. Só há vantagens para os privilegiados. Para esses, a lei e os direitos são garantidos. Estamos em retrocesso mundial. Pandemia, guerras, mortes, direitos de “países de primeiro mundo” sendo retirados, a hipocrisia instaurada…

O certo sendo visto como errado, e palmas aos que vivem e sobrevivem no erro. A certeza da impunidade ao crime, e o preconceito velado, sendo praticados pelos próprios líderes de nações.

Vergonha! D!tadura! Retrocesso!

Minha solidariedade a todas as vítimas da violência cometida contra as mulheres. Não estamos mortas. Juntas, podemos muito mais. Juntes também! 

(Alessandra Capriles)

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